Parece que foi ontem

Cinquenta anos é toda uma vida. E a vida do Mundo da Canção, MC, começou há exacto meio século, em Dezembro de 1969, pela exclusiva vontade de um homem livre que soube congregar à sua volta outros homens e mulheres para quem a liberdade era um anseio comum.

Nesse tempo, a liberdade era uma coisa alheia ao quotidiano dos portugueses, e o simples facto de falar dela podia ser motivo para a perder. Viviam-se tempos sombrios de repressão, e a queda do ditador Oliveira Salazar – derrubado por uma “cadeira patriótica”, como lhe chamou Jorge de Sena, poeta maior, condenado ao exílio – só aparentemente tinha atenuado o clima de medo que ensombrava o dia-a-dia lusitano.

Marcelo Caetano, antigo comissário nacional da Mocidade Portuguesa e ex-presidente da Câmara Corporativa, assumira em Setembro de 1968 o posto de Salazar prometendo uma “evolução na continuidade” que rapidamente se revelou como pouco mais do que uma mera operação de cosmética: a PIDE passou a DGS, a Censura transmudou-se em Exame Prévio, mas os meios e os fins continuaram os mesmos. A emigração era a última esperança dos pobres, desde que conseguissem passar a fronteira. E, em África, acentuava-se uma dolorosa e cruel guerra sem solução à vista.

Mas alguma coisa estava a mudar no mundo. A América agitava-se no desconforto da guerra do Vietname e, na Europa, vivia-se o rescaldo dos acontecimentos de Maio de 68, cujos efeitos se fariam sentir durante bastante tempo, quer em França, quer nos países em volta, Portugal incluído. Aqui a contestação ao regime ganhou um novo fôlego, com o espoletar de uma “crise académica” que rapidamente saltou os muros da universidade e se espalhou a todo o país.

Tudo isto teve reflexos imediatos na cultura popular. Foi em ‘69 que os Beatles chegaram ao fim, mas a revolução musical que os quatro cabeludos de Liverpool tinham protagonizado já era uma realidade imparável, no Reino Unido e fora dele. Do outro lado do mar, o Festival de Woodstock era o acontecimento do ano, quer pelos que nele participaram (Ritchie Havens; Joan Baez; Joe Cocker; Melanie; Arlo Guthrie; Santana; Janis Joplin; The Who; Blood, Sweat & Tears; Crosby, Stills, Nash & Young; Jimi Hendrix, entre outros) como pelos que ali não estiveram: dos Beatles aos Rolling Stones, passando pelos Doors, Led Zeppelin, Bob Dylan, Moody Blues, Frank Zappa, Simon & Garfunkel ou Procol Harum, para citar apenas alguns dos vários que os organizadores tinham em agenda, mas que por diferentes razões não puderam ou não quiseram estar presentes.

É neste contexto que, em 16 de Dezembro de 1969 – uma terça-feira pré-natalícia – surge nas bancas a primeira edição do MC. Era uma revista em formato ligeiramente maior que o A5 que se anunciava como “publicação mensal”, pelo preço, não módico para a época, de três escudos e cinquenta centavos. Na capa, além do título – a branco sobre fundo vermelho – uma foto ocupava quase todo o espaço: Francisco Fanhais, padre católico e cantor, que nesse ano tinha alcançado alguma notoriedade através de um programa de televisão (o Zip-Zip de Carlos Cruz, Fialho Gouveia e Raúl Solnado) que abalou, também ele, o triste panorama artístico que se vivia. Em rodapé, alguns nomes deixavam subentendida a linha de rumo que o MC se propunha seguir: José Afonso, Padre Fanhais, Duarte e Ciríaco, Álamos, Gilberto Gil, The Beatles, Joan Manuel Serrat, Raúl Solnado, Jean Ferrat, Patxi Andión, Chico Buarque, Luís Cília, Joaquín Diaz, Rolling Stones, Manuel Freire.

Lá dentro, textos e canções, destes mas também de outros, alguns igualmente chamados à capa – mais que não fosse porque era necessário iludir a vigilância dos zeladores da ordem e dos bons costumes com alguns nomes mais inócuos: Adamo, Barry Ryan, Fluido, Charles Aznavour, Los Payos, Elvis Presley, Bee Gees, Joe Dassin, Michel Polnareff, Richard Anthony. Mas o objectivo maior da publicação é claro e vem expresso sem margem para dúvidas logo no primeiro número do MC: “lutar contra o cançonetismo apodrecido e ajudar a construir uma canção diferente”.

Uma canção diferente era o que já conhecia Avelino Tavares – fundador, editor e primeiro director do MC – que tinha vivido durante alguns anos em França, onde teve a oportunidade de conhecer uma realidade substancialmente distinta daquela com que nos era permitido contactar por cá. Pôde, além disso, assistir de perto e ao vivo a numerosos espectáculos que, em Portugal, não eram sequer imagináveis: Georges Brassens, Serge Reggiani, Léo Ferré, Colette Magny, Yves Montand, Georges Moustaki, Barbara, Jean Ferrat. E assim, no regresso a Portugal, o “projecto MC” rapidamente começou a ganhar forma na cabeça de Avelino. E, quando a oportunidade surgiu, apressou-se a dar-lhe corpo, com o entusiasmo e a dedicação que lhe conhecem e reconhecem todos quantos têm convivido com ele nos últimos 50 anos.

No charco de águas paradas que era o Portugal de então, o MC depressa se tornou uma referência para todos quantos ansiavam por algo mais do que a piroseira dominante. Era, aliás, nesse sentido que se dirigiam as vozes de José Afonso, Adriano Correia de Oliveira ou Manuel Freire – e, nesse ano de 1969, outros nomes se lhes juntavam, furando como podiam as malhas apertadas da lei do silêncio: Fanhais, Vieira da Silva, Fausto, Duarte e Ciríaco, A.P. Braga, Rita Olivaes, 1111. No exílio, Luís Cília e José Mário Branco também já se faziam notar. Para todos – estes e os que se lhes seguiram, em boa parte fruto do boom proporcionado pelo Zip – o MC era, mais do que uma montra, uma porta aberta para se darem a conhecer e divulgarem o trabalho que faziam.

Assim, após o número inicial de Dezembro de 69, o MC dedicou-se de modo intensivo a divulgar o que de melhor se fazia – na área da música e, sobretudo, da canção – em Portugal e no mundo. A Avelino Tavares outros nomes se juntaram, irmanados no objectivo comum de contribuir para mudar a paisagem sonora do país: a começar pelo jornalista e escritor José Viale Moutinho, que assumiu a direcção da revista logo em 1970 e cujo contributo foi fundamental para o bom sucesso da publicação. Mas também – aqui citados aleatoriamente – gente como Maria Teresa Horta, César Príncipe, Jorge Lima Barreto, Octávio Fonseca Silva, Melo da Rocha, José Cid, Carlos Feixa, Luis Paulo Moura, Manuel Neves, Fanch Deudé, Fernando Sylvan, Vieira da Silva, Mário Correia, Guilherme Soares, Jorge Cordeiro, Michel Brunet, Arnaldo Jorge Silva, Tito Lívio.

Com todos eles o MC cresceu e consolidou-se, chegando a ultrapassar os 25 mil exemplares de tiragem. Cada nova edição era aguardada com crescente expectativa e guardada com zelo e carinho pelos leitores fiéis que a revista entretanto foi conquistando. Sem nunca se submeter à censura prévia – obrigatória para todas as publicações periódicas, mas que o MC conseguiu habilmente contornar durante os primeiros 33 números – a revista tornou-se num verdadeiro “guia de audição” para os amantes de música de qualidade.

Foi assim até Março de 1973, quando uma brigada da PIDE apareceu sem se fazer anunciar no número 134 da Rua Passos Manuel, onde funcionava a redacção da revista. O número 34 estava impresso e prestes a seguir para distribuição, mas em vez disso viajou directamente para a sede da “prestimosa”, na Rua do Heroísmo, de onde só saiu 13 longos meses depois – desfalcado de algumas dezenas de exemplares que os pides usaram para atear fogo às listas de bufos e outros documentos que quiseram destruir antes da rendição.

A intervenção da PIDE foi um duro golpe para o MC – e não apenas do ponto de vista financeiro: a partir dessa altura e até ao 25 de Abril, cada novo número passou a ser objecto da leitura atenta e desconfiada dos censores que, em caso de dúvida, optavam por cortar o que não percebiam. Isto originava sucessivos atrasos e desmotivava uma redacção já de si precária, porque não profissional – o MC não tinha estrutura nem capacidade económica para tanto – e por isso sempre sujeita às contingências ditadas pelo ganha-pão de cada um dos elementos que a integravam.

Entretanto deu-se Abril. No turbilhão das diferenças ideológicas que a partir daí puderam manifestar-se livremente, o MC viu-se envolvido numa sucessão de lutas internas, protagonizadas por diferentes facções e movimentos políticos. No espaço de um ano, a direcção da revista sofre várias alterações e, com elas, vai mudando também a forma e o conteúdo. Só o enorme sentido de liberdade de Avelino Tavares consegue fazer com que a revista continue, mas entretanto outras publicações vão aparecendo – dotadas de estruturas profissionais com que o MC não conseguia competir – e, de algum modo, vão ocupando o seu lugar nas preferências e, sobretudo, nos hábitos dos leitores. Contra ventos e marés, o MC consegue sobreviver durante mais uma década, até deixar de se publicar, no formato original, em 1985.

Para trás ficam 67 edições, através das quais é possível revisitar boa parte da história dos movimentos de renovação da música portuguesa, mas não só. Desde Vilar de Mouros ao Cascais Jazz, passando pelos festivais da RTP ou pela Festa do Avante e pelos primeiros grandes espectáculos internacionais dos anos 70 e 80, no Porto e em Lisboa, poucos terão sido os acontecimentos musicais importantes dessas décadas que não foram noticiados e/ou objecto de análise nas páginas do Mundo da Canção.

E o mesmo se diga da quantidade (e qualidade) dos músicos e cantores que o MC entrevistou ao longo de década e meia. Podemos dizer, sem receio de errar, que pelas páginas da revista passaram testemunhos e entrevistas de quase todos os grandes nomes da canção portuguesa dos anos 60, 70 e 80. E muitos dos estrangeiros também. Numa resenha não exaustiva é possível dar conta de conversas publicadas com figuras como Adriano Correia de Oliveira, António Bernardino, António Macedo, Ary dos Santos, Brigada Victor Jara, Carlos do Carmo, Carlos Mendes, Carlos Paredes, Deniz Cintra, Duo Orpheu, Fausto Bordalo Dias, Fernando Martins, Fernando Tordo, Filarmónica Fraude, Hugo Maia de Loureiro, José Afonso, José Barata Moura, José Cid, José Jorge Letria, José Mário Branco, Júlio Pereira, Luís Cília, Manuel Freire, Maria Guinot, Nuno Filipe, Opus Ensemble, Paulo de Carvalho, Pop Five Music Incorporated, Raízes, Rita Olivaes, Rui Mingas, Sérgio Godinho, Shila, Teresa Paula Brito, UHF ou Vitorino – isto falando apenas de (alguns) protagonistas portugueses. Mas o MC também deu voz a renomados estrangeiros como o grupo Aguaviva, Amancio Prada, Angel Parra, Antonio Portanet, Carlos Puebla, Chico Buarque, Daniel Viglietti, Elisa Serna, Jorge Bonaldi, Léo Ferré, Manfred Mann, Manuel Gerena, Patxi Andión, Pi de La Serra ou Wallace Collection. Entre muitos outros que, numa ou noutra ocasião, tiveram oportunidade de se expressar através do MC.

Em 1985, consciente de que os tempos eram outros, Avelino Tavares decide então, segundo as suas próprias palavras, “passar do papel para o palco”. O MC continuará a ser um espaço aglutinador de artistas e amantes de música, já não como veículo de divulgação impressa, mas como motor da organização de espectáculos – de resto, na linha do que já tinha sido feito, ainda antes da revolução, através dos históricos “convívios MC”, na Galeria Alvarez, em 1970 – e como importador/distribuidor alternativo de discos e revistas da especialidade.

E é assim que o MC se lança na produção de alguns concertos que ficaram na pequena história da música da cidade do Porto. Dos mais marcantes cabe realçar os primeiros concertos profissionais de Carlos Paredes, mestre da guitarra portuguesa, realizados no Teatro Carlos Alberto, e os espectáculos de Astor Piazzolla, Atahualpa Yupanque, Nara Leão, Maria João Pires, Gal Costa, B.B. King, Miles Davis, Cesária Évora, Patxi Andión, Léo Ferré e José Afonso – que realizou, no Coliseu do Porto, o último concerto, em Maio de 1983. Mas também as 15 edições do Festival Intercéltico do Porto, os Festivais de Jazz de Matosinhos, Festival de Jazz do Porto, Funchal Jazz e as várias edições do Gaia Blues. Entre muitos outros, de artistas nacionais e estrangeiros, que ficaram na memória de quantos a eles assistiram. Pela qualidade, rigor e profissionalismo que foram sempre a marca distintiva do MC.

Sim, 50 anos é uma vida inteira. E às vezes nem tanto. A história da música está cheia de protagonistas de primeiro plano que não chegaram a viver meio século. De Buddy Holly, desaparecido aos 22, a Jacques Brel, que tinha 49 anos quando morreu, poderíamos citar de memória mais uma boa dúzia de intérpretes que partiram jovens e se tornaram lendas, sem que uma coisa tivesse necessariamente a ver com a outra, como foram os casos de Ian Curtis (23), Otis Redding (26), Brian Jones, Janis Joplin, Jim Morrison, Jimi Hendrix (todos com 27), Keith Moon (32), John Lennon (40), Elvis Presley (42) ou Edith Piaf (47). E a lista poderia continuar, incluindo os portugueses Carlos Paião (30), João Aguardela (39) ou Adriano Correia de Oliveira (40), mas também os brasileiros Cazuza (32), Gonzaguinha (45) ou Nara Leão (47), entre muitos outros, de todas as línguas e sons e lugares.

Mas porquê – perguntarão os leitores – porquê falar dos mortos num texto que é, sobretudo, de exaltação da vida – e de uma vida intensa e vibrante como foi a do Mundo da Canção? Porque, como é sabido, ninguém morre verdadeiramente enquanto permanece na memória dos que lhe querem bem. E é por isso que, mais do que uma lembrança, o MC continua a ser uma coisa viva, como é próprio das ideias e dos ideais que não se apagam.

E assim, num instante, passaram-se 50 anos. Meio século, já, desde que o MC veio a lume pela primeira vez. E parece que foi ontem.

Texto © Viriato Teles, Fevereiro 2020

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