Avelino Tavares: um homem do Mundo (da Canção e da Liberdade)

 

A vida dele só não dava um romance porque já o é. Um romance de amor e paixão, pelo Porto e pela música. Um e outra são a razão de ser da vida de Avelino Tavares, tripeiro de coração e alma, que há 50 anos deu corpo a um projecto editorial sem paralelo em Portugal: o Mundo da Canção, que todos se habituaram a conhecer simplesmente como MC, e que foi, antes e depois de Abril, lugar de encontro e porto de abrigo para músicos, cantores e todos quantos amam a mais universal das artes.

Nasceu em 1938 no lugar de Figueiredo de Cima, freguesia de Pinheiro da Bemposta, Oliveira de Azeméis, mas veio para o Porto ainda criança e por cá cresceu e se fixou, depois de uma passagem por França onde aprendeu a ver o mundo para lá das fronteiras e das mordaças. A infância passou-a no bairro da Fontinha. «O largo ainda lá está, e quando ali passo sinto uma grande saudade», diz. As tardes, nas férias, passava-as a ver os outros miúdos jogar à bola, com alguma amargura porque «o menino não podia vir para a rua». Aí nasceu o gosto pelo desporto, que havia de fazer dele um adepto convicto do Futebol Clube do Porto, de que é com orgulho o sócio 501.

Aos 14 anos, viveu um momento difícil, com a morte da tia-avó Elvira, que o criou, «uma mulher a sério, rigorosa» que lhe deu amor e lhe ensinou a disciplina do rigor. Sozinho, cultivou amizades por correspondência com outros jovens de vários lugares do mundo, e foi assim que conheceu Simone, uma amiga de Poitiers, que numa viagem a Portugal o persuadiu a ir estudar para França. «Foi uma mulher também muito importante na minha vida, era como se fosse minha irmã.»

Assim começou a conhecer a Europa e o mundo. Com a família de Simone ou à boleia, percorreu a França inteira, mas também Itália, Áustria, a Alemanha: «Corri tudo, e isso também foi muito importante para a minha formação.»

O gosto pela música, esse, já o levava de Portugal, mas foi Poitiers que lhe apurou os sentidos. Mal chegou, a primeira coisa que fez foi comprar um gira-discos: «Lembro-me como se fosse hoje: era cor-de-rosa e cinzento, não era muito bonito, mas era o mais barato que havia na loja.» Nele ouviu toda a colecção de singles e EPs da amiga Simone, com quem depois ouviu todos os grandes nomes da chanson que passavam regularmente pelo teatro da cidade: Brassens, Reggiani, Ferré, Colette Magny, Montand, Moustaki, Barbara, Ferrat. Não imaginava ainda que, muitos anos mais tarde, haveria de trazer ao Porto alguns deles, para recitais que fizeram história e permanecem na memória de quem os (ou)viu.

Ao fim de três anos e meio, o tio-avô visita-o em Poitiers e propõe-lhe regressar a Portugal. Entretanto conhecera Marie Françoise, futura mulher e mãe dos três filhos. Voltou ao Porto para tomar conta da empresa familiar, Tipografia Aliança, «uma gráfica tradicional, com maquinaria ultrapassada». Em sociedade com Fernando Vieira, um amigo que era também braço-direito do tio-avô na tipografia, ultrapassou as dificuldades iniciais – «o meu tio não cumpriu várias coisas que tinha prometido, e a gente partiu do zero» – e, lentamente, começou a consolidar o negócio.

Poucos anos depois, Salazar cai da cadeira e, em França, acontece o Maio de 1968. E aí começou um novo ciclo e a nova vida de Avelino Tavares. Francófono assumido, acompanha pelos jornais que lhe chegam o que acontece nas ruas de Paris: um vento de esperança que se espalha pelo mundo e se espelha na música que se ouve lá fora e que algumas vozes corajosas tentam fazer ouvir cá dentro.

E é então que esta história verdadeiramente começa.

– Já tinhas passado os 30 anos quando criaste o Mundo da Canção, ou seja, já não eras propriamente um miúdo. Como é que te meteste nessa aventura?
– A minha vida foi sempre construída de ciclos. Depois do Maio de 68, houve as lutas académicas – em Coimbra, sobretudo – e depois o Festival de Woodstock, com toda aquela envolvente, aqueles artistas. E houve o Zip-Zip, onde pela primeira vez os portugueses, naquela “abertura” entre aspas, viram o melhor que havia em Portugal. Foi um desabrochar enorme, e por isso o grande sucesso que o programa teve, para mim o mais marcante, até hoje, da televisão. E por conseguinte…

– O MC aproveita a “primavera marcelista”?
– Eu nunca acreditei nos fascistas! Foi mais o que se passava no mundo, senti que era a altura. A gráfica já estava consolidada, falei ao Fernando e expliquei-lhe a minha ideia. E ele disse-me: “Tu fazes o que entenderes. É bom para a tipografia?” “Claro, é um trabalho como qualquer outro.” “Então fazes o que entenderes”. Foi importante ele ter-me apoiado, não me ter cortado as asas. Porque, se cortasse, eu mudava de “galinheiro”. Era um objectivo que tinha, divulgar a música portuguesa.

– O primeiro número sai em Dezembro de 69, com o então Padre Fanhais na capa. A ideia era também aproveitar o “balanço” do Zip-Zip…
– Claro. O Fanhais teve um grande sucesso no Zip, e isso era bom para lançar o primeiro número. E então fui a Lisboa, às editoras de discos, com as maquetes – e voltei para o Porto com uma grande desilusão, a chamar-lhes muitos nomes, portuenses, pelo caminho…

– As editoras não acreditaram no projecto?
– Não, nada. “E ainda por cima com este na capa?” E riram-se na minha cara… Mas eu disse-lhes: “Vocês esquecem-se que eu venho da zona do granito! Este projecto vai vencer”. E eles riam-se. Mas esse riso deu-me vitaminas. Sai o primeiro número, e continua. E a censura, eu não sabia o que era…

– Como é que foi possível escapar à censura durante três anos?
– Foi possível porque vinha lá o Adamo, figuras sobretudo estrangeiras, daquela música mais comercial. E lá no meio vinha o resto, era uma maneira de embrulhar as coisas. E passou.

– Mas mesmo assim, em 1973 a revista sofre um golpe grande, com a apreensão do número 34, que saiu da tipografia directamente para a delegação da PIDE…
– Ali pertinho. A tipografia era na Rua de Santo Ildefonso, junto ao Largo do Padrão, e a PIDE ficava a 500, 600 metros, na Rua do Heroísmo. Ligaram-me do escritório, a dizer que estavam lá uns senhores que queriam falar comigo. Mas há uma coisa que sempre me aconteceu: nunca tive medo. Porque o crime não era eu que o cometia. E lá fui. E depois vim com eles, a conversar normalmente, a pé, da Rua Passos Manuel 134 até à Rua de Santo Ildefonso 396. Quando entrei com os inspectores as pessoas ficaram muito brancas. E eu disse-lhes: “Não se preocupem, eu resolvo isto”. É da minha natureza, sabes? Eu achava que se entrasse em pânico dava cabo de tudo. Eles telefonaram, falaram com quem tinham de falar, e pediram-me para o pessoal os ajudar a carregar as revistas. E eu disse: “Vocês peçam-me tudo, mas isto vai ser já uma perda de dinheiro muito grande, vamos ter um rombo enorme com esta apreensão, e não vou parar as máquinas. Vou eu ajudar.” E fui com eles, ajudei-os do princípio ao fim. Mas a jogar em “fifty-fifty”: dava-lhes um maço de revistas e metia outro na zona do lixo…

– Sem eles perceberem, claro.
– Nada! Eu ia pelo corredor sempre atrás deles, nunca ia à frente. As revistas, umas já estavam aparadas, mas outras ainda não. Iam nessa semana para a Bertrand, na Amadora, para distribuição. E, na zona da guilhotina, havia um vão de escadas onde tínhamos o papel velho, e eu joguei para ali umas centenas delas, saquei o que pude. O Fernando, meu sócio, estava branco como a cal, coitado! Depois carreguei-as e levei-as para casa. Quando foi o 25 de Abril, na PIDE fizeram uma fogueira com os documentos importantes, e usaram o Mundo da Canção para fazer as “paredes”. O Viale Moutinho tirou uma fotografia com os restos dessa fogueira.

– Esse foi o primeiro golpe, mas depois houve outros. Lembro-me do primeiro número após o 25 de Abril, que trazia uma feroz autocrítica, naquela linguagem maoista da época: “o MC é uma revista burguesa”. Sendo tu um homem da liberdade, não deve ter sido fácil. Como é que lidaste com isso?
– Olha, exactamente da mesma maneira como lidei com a capa do número 34. Era a liberdade, um momento muito importante do país – e também da Europa, do mundo. E por conseguinte, é o problema da “mola”: quando se carrega, ela fica pequenina, mas depois larga-se, e ela salta. Isto passou-se em todas as áreas da sociedade portuguesa – aquelas manifestações que havia, tudo isso. Era normal.

– Não tiveste a tentação de intervir mais?
– Não, nunca, não estava na minha maneira de ser. Então se eu defendia a liberdade, depois ia dizer que tinha de ser assim ou assado? Os textos vinham, eram para publicar! Até houve uma altura em que nem intervinha nas capas. E eu fazia tudo, era um homem-dos-sete-instrumentos: até batia os textos à máquina, porque os linotipistas não percebiam a letra dos colaboradores, e ficava mais barato ser eu a passá-los. Tanto que quando a PIDE lá foi, eu perguntei “Mas porque é que vocês querem apreender isto?”. E eles: “Ah, sabe, é que tem aí uns poemas contra a guerra colonial”. E eu, a fazer-me de parvo: “Ah, tem? Sabe, é que eu só edito, nem leio o que aí vem.” Estava farto de os ler, claro. Mas nunca alterei nada, nunca interferi em nada. E sou muito feliz com isso.

– Foste o primeiro director do MC…
– Por mero acidente.

– …e logo que pudeste passaste “a bola” ao Viale Moutinho.
– Quando saiu o primeiro número, ele ligou-me, muito entusiasmado. E com ideias sobre coisas que se podiam fazer. E eu aproveitei, passei-lhe logo a “pasta”. O Viale deu o grande impulso à revista, foi uma das pessoas muito importantes que ali colaboraram. Graciosamente, é preciso dizer: nunca ninguém recebeu um tostão!

– A revista continuou até meados dos anos 80. Em que altura é que percebeste que era tempo de terminar a publicação e passar a outras forma de actuação?
– Repara: era uma equipa amadora, eram tudo pessoas que andavam nas universidades ou tinham outras ocupações. A seguir à apreensão tornou-se tudo mais difícil: ir à Censura entregar as provas, depois recolhê-las, vinha tudo cortado, era preciso fazer tudo de novo e voltar a enviar. A revista tornou-se irregular. Até que – felizmente! – aconteceu o 25 de Abril. E apareceram outras revistas, e jornais – como o Se7e – que tratavam dos mesmos assuntos, mas de uma forma melhor, profissional. Então chegou uma altura em que disse a mim mesmo: “Tu não vais deixar isto, mas vais passar do papel para o palco.” E foi isso. E também a loja, a MC-Discoteca, e a importação de discos…

– Sempre com a marca MC. E o mesmo espírito.
– Ah, sim, sempre. O MC-Discoteca foi a primeira loja, no Porto, num primeiro andar. Até aí só havia cabeleireiros para senhoras. Era uma loja muito bonita, projectada pelo arquitecto Pessegueiro. Às vezes havia pessoas nas escadas, umas para comprar discos, outras para bilhetes. Porque fomos a primeira organização em Portugal a vender bilhetes fora das bilheteiras das salas. Era uma maneira de divulgar a loja. “A imaginação ao poder”, como se dizia no Maio de 68.

– Entretanto começaste a dedicar-te à produção de espectáculos, e organizaste alguns dos concertos históricos da cidade do Porto: de Léo Ferré, Atahualpa Yupanki, Patxi Andión… E muitos portugueses, também, incluindo o último espectáculo de José Afonso, no Coliseu do Porto, e os concertos de Carlos Paredes, no Carlos Alberto.
– Esses foram os primeiros espectáculos só dele, criados com a liberdade que ele quis. Não era convidado de ninguém, foi a primeira vez que isso aconteceu. Foram dois concertos que me deram uma trabalheira imensa, mas feitos com um amor muito grande, uma enorme admiração pelo Carlos Paredes. Em relação ao José Afonso, foi muita alegria, mas também muita tristeza. Aliás, se vires a fotografia desse espectáculo, no final, eu estou a olhar para baixo. Normalmente nunca estou naquela posição, estou sempre de cabeça erguida! Ele vinha já muito debilitado. Mas foi um concerto único. O José Afonso começava a cantar e melhorava bastante. Ainda hoje há pessoas que me falam desse espectáculo.

– Outro dos grandes espectáculos que fizeste no Porto foi com o Astor Piazzolla. E até há uma história com ele, que mete um livro de culinária. Conta lá.
– Esse foi um concerto memorável. Ele vinha a Lisboa, para um concerto organizado pelo Paulo Gil, e na altura fui contactado por um administrador do Jornal de Notícias, para organizar um espectáculo – aliás, dois: um para uma certa elite de leitores, e outro mais popular – para comemorar os 100 anos do jornal. Começámos a falar do primeiro, e eu disse-lhe: “Para isso só há um nome: Astor Piazzolla.” Devo ter falado com tamanha convicção que ele me respondeu: “Eu não sei quem é, sr. Avelino. Mas não precisa de me dizer mais nada, é esse que vem!” E assim foi.

– Mas a história de que eu falo é outra: um livro de que tu andaste à procura…
– Pois. O Piazzolla veio de comboio, e fui buscá-lo a Campanhã. E quando chegámos ao hotel, perguntou-me: “O que é que tu queres, logo?” E eu disse-lhe: “Um grande concerto, uma coisa para arrasar!” E ele: “Ah é? Então aponta: eu quero a receita do leitão da Bairrada, e queremos cear. E gostava que a ceia fosse leitão.” Então telefonei a um colaborador meu, para ir a uma certa livraria comprar a Cozinha Tradicional Portuguesa da Maria de Lourdes Modesto. Depois fui ao bar do Rivoli e perguntei ao empregado que lá estava onde é que podia arranjar o leitão. E ele disse-me: “Oh, sr. Avelino, eu faço isso com uma perna às costas. Olhe: primeiro, vou ali à Confeitaria Cunha; se a Cunha não tiver, vou a Ermesinde; e se tiver de vir da Bairrada também vem!” Eu gosto de falar com pessoas assim! Nesse jantar entreguei ao Piazzolla o livro, e eles comeram leitão como nunca vi: com as mãos, como uma satisfação… No outro dia, fui levar o Piazzolla à estação, e lá ia ele, com o livrinho debaixo do braço. Era um génio! Mas, sabes?, é uma música difícil. Eu não consigo ouvir Piazzolla todos os dias, mexe comigo. É como a do Paredes, muito intensa.

– A propósito: a biografia de Carlos Paredes foi um dos livros editados pelo MC, que a certa altura se dedicou também à publicação de livros e de discos.
– Foram actividades pontuais, mas que também deram muito prazer. Publicámos meia dúzia de livros originais, o primeiro saiu em 1978, um “caderno MC” sobre Daniel Viglietti, e o último em 2002: o “Marginal (Poemas Breves e Cantigas)”, que reúne quase toda a obra poética – cantada e escrita – de Vieira da Silva, um querido amigo que também foi director do MC, ainda nos anos 70. Mas os mais significativos foram dois livros que publicámos no ano 2000 e que tive muito orgulho em editar: as primeiras (e até agora únicas) biografias de Carlos Paredes e José Mário Branco, ambas do Octávio Fonseca Silva. Foi a maneira de celebrar, e penso que muito bem, os 30 anos do Mundo da Canção. E ainda publicámos, em 2005, uma compilação de entrevistas publicadas no MC.

– Meia dúzia de livros. E mais ou menos outros tantos discos…
– Três LPs e três CDs: o primeiro foi uma recolha de música tradicional mirandesa, um álbum editado em 1987, em parceria, e republicado em CD dez anos mais tarde. Mas os primeiros em edição exclusiva do MC foram dois LPs de um grupo importante da música de vanguarda, o Telectu, de Jorge Lima Barreto e Vítor Rua: “Live at the Knitting Factory”, gravado em Nova Iorque, e “Encounters II / Labirintho 7.8”, com a participação de Jean Sarbib. Foram os últimos discos em vinil que eles gravaram, ambos publicados em 1990. Aliás, o Lima Barreto tinha colaborado no Mundo da Canção, também, e nós já tínhamos apoiado um concerto dos Telectu, no Carlos Alberto. Depois disso ainda publicámos mais dois CDs, um a propósito do 3º Festival de Jazz do Porto e a edição em compact-disc do “Terreiro das Bruxas”, dos Vai de Roda. Mas a edição discográfica não era a nossa vocação, foi uma coisa esporádica.

– Outro capítulo importante da tua vida foi o Festival Intercéltico, que se realizou durante uns 20 anos e colocou o Porto na primeira linha dos festivais europeus de música. Como é que foi?
– Houve uma pessoa que teve uma importância fundamental nisso, o Bernard Despomadères, responsável pela cultura do Instituto Francês do Porto. Um dos directores do Instituto ia-se embora, o Bernard convidou-me para um jantar de despedida, e depois fomos passear para a Foz. A certa altura ele pergunta-me se eu conhecia o Festival Interceltique [de Lorient]. Claro que conhecia, é o melhor festival folk da Europa. E diz-me ele que podíamos fazer aqui um Festival Intercéltico: “Essa vai ser uma das propostas que vou fazer ao novo director”. E assim foi. Fizemos o primeiro, no velhinho Carlos Alberto, com um programa de luxo: Alan Stivell, Andy Irvine, Vai de Roda, Júlio Pereira, Milladoiro e Emílio Cao. Foi um grande êxito. Entretanto, a Câmara do Porto mudou, o novo executivo conhecia o trabalho do Instituto e o meu, e juntámos forças. O presidente era o Fernando Gomes e a vereadora da cultura a Manuela de Melo. Fizeram-nos uma proposta: o Instituto colaborava no Festival, com os artistas franceses, e eu fazia a produção, organizava e divulgava, com o patrocínio da Câmara. O MC não podia meter-se sozinho a fazer isto, não tínhamos capital. A partir daí o Festival Intercéltico do Porto foi sempre a crescer. Vieram cá todos os grandes músicos folk da Europa, foi um festival que ficou na história da música do Porto, e ainda hoje as pessoas falam dele.

– Mas acabou…
– A machadada final foi dada pelo corte do patrocínio, pelo presidente Rui Rio. Mais tarde, entrou este novo governo da Câmara, ainda tentei junto do novo presidente, mas não houve interesse. E por isso o Intercéltico e o Festival de Jazz do Porto não continuaram. Eu acho que, pelo menos estes dois festivais, a cidade podia ter mantido. Comigo ou com quem fosse. Desde que fosse bem feito, não uma coisa feita à balda – que não começa a horas, onde os artistas não aparecem… Os espectáculos organizados pelo MC, fosse onde fosse, à hora marcada arrancavam. És testemunha disso. Eram festas muito bonitas, a música folk tem outra mentalidade. E percorremos as salas do Porto quase todas: Coliseu, Carlos Alberto, Batalha, Cinema do Terço – o camartelo deu cabo dele! – onde o Intercéltico se realizou alguns anos, enquanto descaracterizavam o Rivoli: foi tudo abaixo, o interior foi à vida, só deixaram a fachada. O Porto é useiro e vezeiro nisso, infelizmente. Olha o que fizeram ao Palácio de Cristal. Um crime!

– Também estiveste ligado à luta pela preservação do Coliseu, quando esteve em risco de ser vendido a uma Igreja…
– O Mundo da Canção teve um papel muito importante nisso. Eu soube dessa manigância quando estava tudo preparado para assinar o contrato, em Paris. O Coliseu pertencia a uma seguradora, e a IURD queria comprá-lo para fazer um “grande templo” no Norte. Lançámos o primeiro comunicado junto dos média nacionais, e aí começou a luta pelo Coliseu. Porque foi a primeira sala onde eu entrei, para ver circo, e onde passei mais tarde, no auge do cinema mundial. Vi ali centenas de filmes, e isso marcou-me. Além de que uma sala daquelas, histórica, não podia ir parar às mãos de uma qualquer Igreja, fosse ela qual fosse. Tinha de continuar na sua matriz cultural, foi essa a nossa luta. Falei com várias pessoas da cidade, todas as reuniões foram feitas no MC, já na Duque de Saldanha. A Câmara também aderiu, e bem.

– E acabaste por ser como que o líder dessa luta.
– Nestas coisas há sempre um pião-das-nicas. Decidimos fazer uma assembleia na escadaria exterior do Coliseu para denunciar esta golpada, e tratei de tudo com o Governo Civil – porque, atenção, foi tudo autorizado, era tudo oficial. Nessa tarde ligou-me o governador, a dizer que lhe tinham telefonado do Coliseu, preocupados, com medo que aquilo fosse assaltado. Eu garanti-lhe que ninguém ia assaltar nada, eram tudo pessoas de bem. Então fez-se uma reunião do “núcleo duro”, no Majestic, e veio creio que o Júlio Cardoso e disse: “Tu é que vais dirigir isto.” E correu tudo muito bem. Ainda guardo na memória um senhor que teve o gesto talvez mais importante daquela assembleia: trazia uma apólice da companhia proprietária do Coliseu e disse: “Tenho aqui uma apólice desta companhia de seguros e vou rasgá-la”. As pessoas deliraram! Era tanta gente, tanta gente, que a polícia teve de cortar o trânsito entre a Rua de Santa Catarina e a Praça dos Poveiros!

– E foi uma luta ganha.
– Claro. Tinha de ser. Depois, à noite, houve os que se vieram acorrentar à porta. O “folclore”. Mas faz parte.

– Além de ti, há no Porto outra pessoa que teve também um papel decisivo na história da música portuguesa do século XX, e cujo nome tem aliás as mesmas iniciais do teu: Arnaldo Trindade.
– O empresário sem medo. Lançou muita coisa que era muito difícil de fazer naquela altura!

– Como era a vossa relação? Ele seguia o MC, falavam do que cada um fazia?
– Olha, para ser franco, nunca me preocupei em saber se seguia ou não. A gente falava muito “pelos olhos”. Nunca me meti no trabalho dele, nem tinha de me meter, nem ele no meu. Mas criámos uma relação, havia um espírito comum. Estávamos ambos muito empenhados no que estávamos a fazer. Ele teve um papel importantíssimo na música portuguesa, e eu tive o meu. Aliás, ele diz que tivemos um papel complementar: um era no acetato, o outro era no papel. São palavras do sr. Arnaldo Trindade. Conheço-o muito bem, continua cheio de força, com 84 anos. Já tivemos várias conversas, mas mais recentes. Durante o nosso tempo de actividade, andávamos mais focados no que estávamos a fazer.

– Creio que em Portugal deve haver pouca gente, nesta área da música, que não tenha pelo menos uma boa recordação, senão mesmo uma dívida de gratidão para contigo. Sentes-te acarinhado pelos artistas? Tens boas memórias deles?
– Sempre, pá! Os artistas, acho que compreenderam o papel do MC e o meu. Porque eu aprendi com eles. O produtor que fui, mais tarde – hoje já há escolas, mas nessa altura não havia nada – aprendi a sê-lo com eles. Os primeiros concertos que fiz – com o Sérgio Godinho, o Rui Veloso, etc. – não levei um tostão, foi a custo zero. Era a maneira de aprender, de estar ligado. Hoje isso já foi ultrapassado, felizmente, mas nessa altura vir ao Porto era um bocado difícil – as deslocações, isso tudo – e eu era o porto de abrigo. Sempre estive na música com paixão, dedicação, amor. E para ser feliz. E fui sempre feliz.

– Como encaras o estado actual da música, no Porto e em Portugal?
– Hoje está a viver-se um momento muito importante: há escolas de música, conservatórios, está a surgir muita gente jovem de grande qualidade. A música portuguesa está com novas ideias, novas propostas. Até conseguimos ganhar um festival da Eurovisão, e com qualidade. E temos grandes artistas: a Capicua, o Miguel Araújo, a Carminho, a Ana Moura… Muita gente boa, com propostas novas. Quando ouvi a Capicua, chegaram a dizer-me que eu era tolinho. E depois vieram dar-me razão. Estamos num bom momento.

– Este ano, o Mundo da Canção faz 50 anos. Vai haver festa?
– Tenho várias coisas pensadas. Pelo menos três, talvez quatro, mas ainda vou ver os prós e contras. Duma coisa tenho a certeza: vai sair um número especial comemorativo destes 50 anos. Saiu há anos um pelos 45 anos, e vai haver outro, uma actualização.

– Se pudesses voltar atrás, voltavas a fazer o MC?
– Ah, sim. Mas melhor. Sempre sem medo, porque o medo arrasa, perturba, inferioriza as pessoas. Sem medo, porque nós não cometemos crimes. Queremos é que as pessoas saibam mais, tenham mais conhecimento da sociedade que as rodeia. Por isso sim, faria.

– E se voltasses a ser desafiado para fazer outro grande festival, metias-te nisso?
– Claro. Embora, com as dificuldades que tenho – sou um doente renal crónico, faço três sessões de hemodiálise por semana, de quatro horas cada – desta vez tinha que formar uma equipa, porque já não tenho disponibilidade total, nem a força que tinha com 60 ou 70 anos. Mas fazia. Arrebitava.

– O teu amor pelo Porto é do conhecimento geral. Achas que é um amor retribuído?
– A cidade é a minha cidade do coração. Mas a cidade tem um clube que tem o mesmo nome. Sou sócio do FCP há 70 e tal anos. E o clube retribui com as suas vitórias. O resto… Acho que fiz o que tinha a fazer com a cidade. Não estou muito preocupado com o que ela faz ou não faz, se reconhece ou não. Sigo a par e passo a vida da cidade, e sou retribuído pelas vitórias do Futebol Clube do Porto.

Texto “Musonautas, Visões & Avarias 1960-2010: 5 décadas de inquietação musical no Porto” © Galeria Municipal do Porto, 2019
Foto © Público

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