Entrevistas MC
O sonho de um homem
1. A aventura começou no último ano da década de 60. Viviam-se então em Portugal os tempos cinzentos de uma ditadura em fim de carreira mas nem por isso mais amena. Um ano antes, Salazar caíra da cadeira e fora substituído no poder por Marcelo Caetano, cujos tímidos sinais de abertura cedo se revelaram uma encenação destinada a domesticar os mais crédulos: a PIDE foi rebaptizada como Direcção-Geral de Segurança, mas permaneceu intacta nos seus propósitos repressivos de tudo quanto pusesse em causa a ordem estabelecida; a Censura travestiu-se de Exame Prévio, mas nunca deixou de estar ferozmente atenta contra qualquer veleidade libertária; e Portugal continuou cantando e rindo, do Minho a Timor, indiferente às aspirações do seu próprio povo, que continuava a emigrar em massa, procurando em terras de França o sustento e a liberdade que lhe eram negados por aqui.
O mundo, esse, não parava de se agitar: na América, as atenções dividiam-se entre a chegada dos primeiros astronautas à Lua, o movimento hippie que desaguava em Woodstock e os protestos contra a guerra do Vietname, sobretudo depois do massacre de Mai-Lai; na Grã-Bretanha, o ano começava com o derradeiro espectáculo dos Beatles, no telhado da Apple Records, e iria terminar com John Lennon a devolver a Ordem do Império Britânico, em protesto contra o apoio inglês à política belicista de Washington no sudeste asiático; em França, o general De Gaulle abandonava o poder ainda sob o efeito da contestação de que fora alvo durante o Maio de 68; no Médio Oriente, Arafat era eleito líder da OLP e Golda Meir tornava-se primeira-ministra de Israel.
Mas em Portugal, para desespero e raiva de todos os que tinham acreditado que com a morte do ditador o regime iria esfarelar-se como um castelo de areia, o salazarismo mantinha-se para além de Salazar. E, aos que ingenuamente ainda julgavam ser possível uma transição pacífica para a democracia, o regime encarregava-se de demonstrar o contrário: em Fevereiro, apenas cinco meses depois da tomada de posse de Marcelo como primeiro-ministro, o dirigente da Frelimo Eduardo Mondlane era assassinado pela polícia política em Dar es Salaam; em Maio, em Aveiro, uma pacífica romagem ao túmulo de Mário Sacramento, médico e militante comunista falecido dois meses antes, acabou com a intervenção brutal da polícia de choque; e ao longo de todo o ano sucederam-se as prisões, sobretudo em Lisboa, Porto e Coimbra, na sequência das acções de resistência levadas a cabo principalmente pelos sectores universitários que, desde os princípios da década, vinham assumindo um papel central na luta contra o fascismo.
Apesar disso – ou talvez por causa disso – havia cada vez mais quem acreditasse que a mudança era inevitável, e não desistisse de lutar. Na primeira linha deste grupo estava uma meia dúzia de músicos e cantores, quase todos oriundos do meio académico e que, com José Afonso e Adriano Correia de Oliveira à cabeça, protagonizavam já nessa altura um movimento político-cultural que iria fazer história. Nesse ano de 69, Zeca propunha-se «matar definitivamente a choradeira das baladas» com a publicação de «Contos Velhos, Rumos Novos», um álbum onde pela primeira vez se faz acompanhar por outros instrumentos para além da viola de Rui Pato. E edita ainda um single com «Canta Camarada Canta» e «Menina dos Olhos Tristes», uma canção com poema de Reinaldo Ferreira com a guerra em fundo que tinha sido gravada cinco anos antes por Adriano Correia de Oliveira. Este, por sua vez, publica «O Canto e as Armas», um belo conjunto de canções feitas a partir do livro homónimo de Manuel Alegre.
Ao mesmo tempo, o Festival RTP da Canção (na altura a mais relevante manifestação cantigueira nacional) vive o seu primeiro escândalo, quando Simone canta a «Desfolhada» de José Carlos Ary dos Santos e Nuno Nazareth Fernandes, onde dois versos ousados para a época – «quem faz um filho / fá-lo por gosto» – foram suficientes para incomodar as almas pias do regime. E é ainda nesta altura que surge um dos mais marcantes programas de sempre da televisão portuguesa: o «Zip-Zip» que, ao longo de escassos nove meses de emissões, contribui para dar um impulso vital ao então nascente «movimento dos baladeiros» – como ficou conhecido o processo que se desenvolveu a partir daí na canção portuguesa – envolvendo um grupo numeroso de novos cantores, em grande parte motivados pelo exemplo de gente como José Afonso (que não chegou a participar no «Zip», devido à proibição expressa do comissário do regime para a RTP, Ramiro Valadão), Adriano Correia de Oliveira (que esteve na primeira emissão) ou Manuel Freire (que teve no programa de Carlos Cruz, Fialho Gouveia e Raul Solnado o seu maior êxito de sempre, com «Pedra Filosofal»), para além de Luís Cília que, da solidão do exílio (José Mário Branco e Sérgio Godinho também estavam noutras paragens, mas só um par de anos depois se fariam notar a sério por estas bandas), garantia que entre Salazar e Caetano a diferença estava apenas nas moscas. É nessa altura que despontam nomes que vão tornar-se marcos indeléveis da canção de protesto, como o (então) Padre Francisco Fanhais, Fausto, Vieira da Silva, José Jorge Letria, Deniz Cintra, e muitos outros. E é neste contexto que, em Dezembro de 1969, surge o primeiro número do MC.
2. Mundo da Canção. Era assim que se chamava – que se chama – a revista que se publicou de modo mais ou menos regular durante os quinze anos seguintes, sempre com o objectivo explícito de «lutar contra o cançonetismo apodrecido e ajudar a construir uma canção diferente». Com uma tiragem inicial de 4500 exemplares (que chegaria a atingir os 25 mil), teve Avelino Tavares como fundador e primeiro director – função que, por aversão ao protagonismo, assim que lhe foi possível delegou em José Viale Moutinho – e rapidamente se tornou um «caso sério» da imprensa especializada. É verdade que, à época, não havia em Portugal publicações dedicadas exclusivamente à música, pelo que o aparecimento de uma revista com as características desta teria, em condições normais, todas as razões para se tornar um êxito.
Mas acontece que, como já ficou dito, Portugal não vivia em condições normais. E a repressão efectiva que na altura se fazia sentir sobre o pensamento livre tornava utópica a sobrevivência de qualquer projecto que tivesse a ambição de resistir às mordaças em nome da dignidade. Como foi então possível que esta pequena revista feita a partir da cidade do Porto e de uma redacção de modestos recursos vingasse? E, mais ainda, que sobrevivesse à fúria censória da época sem se desviar do seu objectivo principal?
Há que dizer, em jeito de parêntesis e para quem não saiba (ou já não se lembre) que, quando a liberdade é escassa, os criadores não têm outro remédio que não seja o de se tornarem ainda mais criativos, de forma a driblarem com êxito os que têm por função cercear a palavra alheia. Isto é, e no que ao «Mundo da Canção» diz respeito: se a revista tinha por objectivo divulgar a melhor música que então se fazia, com particular atenção às novas correntes musicais que despontavam no nosso país, e se essas formas de expressão eram particularmente incómodas para o regime vigente, então não havia outra solução que não fosse iludir os polícias do pensamento, fazendo-os crer que a revista tratava essencialmente de temas inócuos – como é suposto ser o entretenimento em geral e as publicações «de variedades» em particular. Assim, uma das maneiras encontradas para despistar os fiscais do espírito consistia, por exemplo, na publicação dos êxitos mais populares da música anglófona (alguns nada inocentes, diga-se de passagem, mas havia sempre a esperança de que o bufo de serviço não fosse bom em línguas estrangeiras), no meio dos quais se misturavam as canções com cabeça, tronco e membros dos nossos melhores criadores.
Foi graças a estes e outros artifícios que o MC (nome abreviado da revista, sugerido pelo publicitário António Rolo Duarte no início dos anos 70, que acabou por tornar-se no petit nom pelo qual a publicação passou a ser conhecida) conseguiu, até princípios de 1973, escapar incólume às malhas da censura. Fazer do MC um espaço de liberdade era, de resto, a maior ambição de Avelino Tavares – concretizada em pleno durante os primeiros 33 números da revista que, pelo seu teor aparentemente inofensivo, conseguia publicar-se sem ter de submeter-se ao exame prévio dos coronéis-de-lápis-azul.
Ora sucede que, como se viu, o MC era tudo menos inofensivo. E se os coronéis não ligavam grandemente a estas coisas da música, os seus colegas da prestimosa DGS não eram tão estúpidos e, embora por razões que não tinham propriamente a ver com melomania, davam particular atenção aos «agitadores» da palavra cantada – ou não fossem os recitais de Zeca, Adriano e demais «baladeiros» lugares que frequentavam religiosamente, no cumprimento da sua actividade delatora. Por outro lado, a aparente alforria relativamente ao regime que os redactores e colaboradores do MC julgavam ter conquistado levou-os a desejar querer ir cada vez mais longe. E, aos poucos, a revista foi-se tornando uma cada vez maior e mais influente tribuna de opiniões livres, e portanto passíveis de chamar a atenção dos zeladores da ordem e dos bons costumes.
3. Foi isso que se passou nos princípios de 1973, quando o MC teve o desplante de publicar, no mesmo número e com destaque de capa, um conjunto de textos de análise a cinco discos acabados de sair e que representavam, cada um a seu jeito, autênticas pedradas no charco estagnado em que o país vivia. Eram eles, por ordem de apresentação: «Margem de Certa Maneira», de José Mário Branco, «Fala do Homem Nascido», de Jozé Niza e António Gedeão, com interpretações de Carlos Mendes, Duarte Mendes, Samuel e Tonicha, «Eu Vou Ser Como a Toupeira», de José Afonso, «Palavras Ditas», de Mário Viegas, e «Até Ao Pescoço», de José Jorge Letria. A revista tinha o número 34 e saiu da Tipografia Aliança directamente para o armazém da PIDE, na Rua do Heroísmo, onde se manteve até ao dia 27 de Abril de 1974. A independência tinha um preço (hoje continua a ter, mas a moeda é outra) e o MC pagou-o da maneira mais dolorosa: a partir daí e até à libertação, todos os números passaram a ser objecto de rigorosa análise prévia por parte da comissão de censura.
Por outro lado, não era só devido àquilo que publicava que o MC se tinha tornado objecto da atenção da polícia política. Logo no primeiro ano de existência, os «convívios» da Galeria Alvarez tinham atirado mais uma acha para a fogueira inquisitorial do tempo. Destas sessões de conversas e cantigas misturadas num mesmo cocktail subversivo apenas se realizaram duas edições, ambas em 1970 e qualquer delas com um toque de premonição: a primeira teve como protagonista Manuel Freire, nascido num dia 25 de Abril (de 1942); e a segunda, com Vieira da Silva, realizou-se num sábado, 25 de Abril…
A verdade é que, ainda hoje, os mais importantes criadores desse tempo são unânimes na evocação do MC como um marco fundamental na história da música portuguesa mais empenhada com as transformações sociais – e recordo-me, a propósito, das palavras entusiasmadas que ouvi de Zeca Afonso quando o entrevistei pela primeira vez (precisamente para o MC) e do modo como, tanto ele como outros, guardaram sempre da revista dessa época uma grata lembrança.
O certo, também, é que, depois da machadada que a apreensão de 1973 representou para os limitadíssimos meios de que a revista dispunha, as dificuldades não cessaram de aumentar e o MC deixou de publicar-se com a regularidade que até então tinha conseguido manter. Após o 25 de Abril, com a explosão ideológica que a liberdade conquistada permitiu, as dificuldades passaram a ser outras. A começar pela clivagem que se verificou na própria redacção da revista e que esteve na origem de um «desvio maoista» que durou alguns meses, durante os quais o MC se expôs às mais absurdas «autocríticas»… Frutos da época, enfim, que talvez valham uma referência mais aprofundada no próximo volume destas «Entrevistas MC», onde falarei sobretudo do que foi o percurso da revista nos anos que se seguiram a 1974.
Para já, importa referir que durante toda a sua existência – com períodos melhores e outros piores, e certamente com erros e virtudes como é próprio de todos os projectos com alma – o MC foi sempre uma revista que se pautou pela intransigência (perante tudo quanto não fosse autêntico, perante os vedetismos balofos e as atitudes inconsequentes de quem vê a actividade artística apenas como uma forma de autopromoção), mas também, e principalmente, por um grande afecto pela música e pelos seus criadores. Foi a estes que, ao longo dos quinze anos da sua primeira fase (e depois, quando a partir de 1990 se tornou uma publicação temática dedicada a alguns dos melhores festivais que foram feitos em Portugal – também por iniciativa do MC, mas isso será igualmente tema para abordar no próximo número) esta revista quis dar voz. Sem tabus nem ideias pré-estabelecidas, apenas com total respeito pela verdade de cada um. Foi isto que aconteceu nas entrevistas que se reúnem neste caderno. E com todas as outras que foram publicadas nos 67 números da primeira série do MC.
4. E chegamos, assim, à justificação maior desta introdução – as entrevistas do Mundo da Canção que agora surgem em edição antológica. Seleccionar algumas das muitas dezenas de conversas que o MC proporcionou ao longo de quinze anos, não foi, naturalmente, tarefa fácil, já que a selecção implica sempre a exclusão, e isso é sempre doloroso, sobretudo para um homem de afectos como é o Avelino Tavares.
Porque a aventura – esta aventura do MC, agora prolongada em forma de florilégio – teve sempre um nome próprio, mesmo se geralmente ocultado pela modéstia de quem se vê a si mesmo sobretudo como um «operacional» e gosta de deixar as luzes da ribalta para os outros, os artistas que ele tanto preza. Mas, por respeito à verdade e ao rigor dos factos, há que sublinhar que nada disto (a revista e o resto) teria sido possível se não existisse um homem chamado Avelino Tavares – o Tavares que todos no mundo da música se habituaram desde há muito a conhecer e a apreciar. E de quem só por desonestidade ou má fé se poderá ignorar tudo aquilo que tem feito, quer como editor de publicações quer enquanto produtor de espectáculos, em prol da divulgação do que de melhor tem acontecido nas últimas quatro décadas.
Ora o Avelino é uma criatura de paixões – digo-vos eu, que o conheço há uns trinta anos, mas muitos outros poderão juramentar o que aqui afirmo e assino – e é sabido que nestas coisas do amor nunca há meio-termo. Assim sendo, quando há uns meses me deu conta desta ideia de reunir uma porção de entrevistas do MC numa colectânea, não foi difícil perceber que, uma vez mais, esta era uma aventura para valer. E claro que valeu, ou não fosse ele um homem que gosta de tudo aquilo que faz. A prova está no que vão ler de seguida.
Claro que os textos agora (re)publicados são produto do tempo em que foram escritos, e a essa luz deverão ser lidos na actualidade. O valor das opiniões expressas pelos entrevistados só pode ser avaliado em função da época em que cada uma destas conversas teve lugar, e é até natural que muitos deles já não pensem hoje da mesma maneira – afinal, o mundo é composto de mudança, e não há nada mais efémero do que as palavras que se dizem e escrevem na Imprensa, e as do MC não fogem à regra.
Esta reunião de discursos directos teve, naturalmente, como objectivo relembrar algumas coisas importantes que foram ditas ao longo de década e meia de MC, e que de outro modo ficariam eventualmente submersas no pó dos arquivos. Mas destina-se também de algum modo, a homenagear todos aqueles que, com as suas palavras, contribuíram para fazer do Mundo da Canção uma referência fundamental para a história da música em Portugal. Que, nunca é demais lembrar, é também uma história de resistência. E continua a ser, mesmo se hoje são outros os muros em volta. Por outro lado, e porque várias destas entrevistas foram publicadas antes de Abril, algumas das opiniões aqui expressas estão fatalmente moldadas por todas as cautelas a que esse tempo obrigava. Atenção, pois, às entrelinhas – que era onde geralmente se dizia tudo aquilo que não podia ser dito de outra forma.
Valerá a pena, ainda atentar na diversidade de vozes que por aqui passam, exemplo da pluralidade que foi sempre apanágio do MC, tanto ao nível dos entrevistados como dos entrevistadores. Entre os primeiros incluem-se algumas das primeiras declarações públicas de criadores como Manuel Freire, Rui Mingas, Joan Manuel Serrat, Adriano Correia de Oliveira, a par com discursos de maturidade de pessoas como Fernando Tordo, Carlos Puebla, Sérgio Godinho, Carlos do Carmo, Paredes, José Mário Branco, Fausto ou Luís Cília. Dos segundos, estão aqui textos de prosadores do gabarito de Viale Moutinho, Vieira da Silva, Maria Teresa Horta ou Mário Correia – além de uma interessantíssima experiência jornalística do cantor uruguaio Daniel Viglietti que, para o MC, produziu uma bela e significativa entrevista com Chico Buarque. O reencontro com as perguntas de uns e as respostas de outros e a capacidade de todas estas palavras para sobreviver ao desgaste do tempo é o maior encanto desta colectânea de textos.
O resto é apenas uma questão de prazer. O prazer das conversas com pessoas tão diferentes como as que o Tavares convocou para esta reunião só aparentemente tardia. O prazer de reler as palavras certeiras de quem sabe do que fala e do que canta. O prazer de evocar encontros, lembranças antigas, memórias sem tempo. O prazer de sentir vivo o projecto que começou por ser um sonho de um homem e se tornou parte da realidade de todos nós.
Dezembro 2005