Exposição 
José Afonso 
“O que faz falta”

Vinte anos sempre com Zeca

Mais de duas décadas já se passaram sobre o desaparecimento físico de José Afonso, e no entanto parece que foi ontem. Apesar disso, desde essa triste madrugada de Fevereiro de 1987, o mundo mudou como nenhum de nós podia então imaginar que mudasse.

Desde o fim da União Soviética – que, nessa altura, quase todos nós ainda acreditávamos ser eterna ou, pelo menos, muito duradoura – até à unipolarização dos dias de hoje e à consequente submissão do mundo à vontade imperial da superpotência sobejante, tudo se tornou bem diferente do que poderia supor-se vinte anos atrás.

Vinte anos é a idade de uma geração. E a geração desta idade, afundada em incertezas e com muito menos esperanças do que as que a antecederam, dificilmente consegue vislumbrar uma qualquer «cidade sem muros nem ameias» onde o presente e o futuro façam sentido. Não é uma geração rasca, mas é sem dúvida uma geração à rasca, afogada no quotidiano globalizado do consumo e da precariedade.

O mundo mudou imenso, de facto, nestes quase trinta anos. Mas não tanto que tenha feito com que as canções de José Afonso ficassem fora de moda ou se tornassem meros documentos de um tempo passado. E não só porque universalidade e intemporalidade são duas características centrais de toda a obra de Zeca – as suas músicas de há cinquenta anos mantém hoje a mesma frescura e a mesma modernidade que tinham quando foram escritas – mas porque a vida real se encarregou de negar todos os sonhos que, num dia de Abril, chegámos a acreditar que estavam prestes a concretizar-se.

Quarenta anos depois do «dia inicial», os vampiros e os eunucos voltaram a estar activos e dominantes. E se hoje não temos (ainda) um outro avô cavernoso a comandar as nossas vidas, é só porque a mãe Europa não deixa. A verdade é que muitos dos pressupostos políticos e sociais que ditaram a criação de tantas canções do Zeca voltaram a instalar-se no nosso quotidiano. E também por isso estas palavras permanecem tão dolorosamente actuais.

Mas não é por isso – não só por isso – que estas canções se mantêm dentro do prazo de validade. A verdade é que todas elas possuem essa qualidade única que distingue os grandes mestres dos criadores vulgares: a capacidade de resistir ao tempo e de o ultrapassar. Re-ouvindo hoje o legado de José Afonso, dificilmente encontramos os chamados temas «datados». E no entanto eles existem (sobretudo nos discos da segunda metade da década de 70, muito marcados pelas lutas do período revolucionário), mas as marcas temporais das situações concretas que lhes deram origem não chegam para fazer com que, actualmente, essas músicas percam o interesse ou se nos apresentem como meros documentos testemunhais de uma época.

Pelo contrário: as canções de Zeca, mesmo aquelas que reflectem e retratam determinados episódios ou momentos históricos específicos, conseguem sempre ter uma dimensão musical e poética que não se confina nunca ao seu próprio tempo. Desde «A Morte Saiu à Rua» até ao mobilizador «Coro da Primavera», todas elas foram capazes de resistir ao grande juízo do tempo e se nos apresentam hoje como obras tão ou mais modernas do que muitas produções dos nossos dias. E a prova está na quantidade de jovens músicos que continuam a ter em Zeca uma referência essencial.

É tudo isto que esta exposição também nos recorda, a par com a evocação de uma vida ímpar de um ser humano excepcional, política e socialmente comprometido com os mais nobres ideais. A tudo isto acresce o facto de se tratar de uma iniciativa com a marca de uma instituição que fez história e ocupa um lugar de destaque no universo cultural português: o MC-Mundo da Canção, que desde há mais de 40 anos tem desempenhado um papel central na divulgação da melhor música que se faz em Portugal e no Mundo.

Tal como o Zeca – que, tantos anos depois, teima em permanecer vivo através das palavras e da música que hoje são património de todos nós – também o MC se recusa a morrer e promete continuar. De pé, enfrentando todas as adversidades, disposto a resistir, sempre. Ou, pelo menos, enquanto há força.

Viriato Teles
Janeiro 2007